Ter de lidar com perdas progressivas sem um manual que ensine como atuar é um grande impacto do Alzheimer na família que recebe um diagnóstico.
A doença de Alzheimer entrou em pauta com o filme ”Para sempre Alice”, do cineasta Richard Glatzer, que rendeu o Oscar de melhor atriz à norte-americana Julianne Moore, no ano anterior.
O longa aborda de forma sensível e sem estereótipos o drama enfrentado por uma respeitada professora de linguística da Universidade de Columbia, Nova York. Alice, de 50 anos, começa a sofrer com problemas de memória que logo passam a afetar seu rendimento profissional e familiar, até culminar em um ponto em que ela não lembra mais o caminho de casa. A professora, então, decide procurar um médico neurologista que lhe aplica alguns testes e pede exames específicos.
A doença de Alzheimer precoce (antes dos 65 anos) não é tão comum, mas atinge cerca de 5% dos pacientes. No filme, tanto a personagem como seus familiares têm que aprender a conviver com a enfermidade, incurável e degenerativa.
Não se sabe por que a doença ocorre, mas, com o avanço da medicina, algumas lesões cerebrais passaram a ficar mais evidentes. As duas principais alterações são as placas senis decorrentes do depósito de proteína beta-amiloide, anormalmente produzida no caso da doença, e os emaranhados neurofibrilares, fruto da hiperfosforilação da proteína tau. Além disso, segundo o neurologista Rodrigo Schultz, diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), outra alteração observada é a redução do número de células nervosas (neurônios) e das ligações entre elas (sinapses), com redução progressiva do volume cerebral.
Ainda assim é importante ressaltar que, quando a doença é diagnosticada no início, é possível retardar seu avanço por meio de medicamentos específicos e estimulação física/emocional, garantindo melhor qualidade de vida para o paciente e a família.
Os médicos costumam dividir a evolução dos sintomas em três fases: leve (perda da memória frequente, dificuldade para encontrar palavras), moderada (necessidade de ajuda com a higiene pessoal, esquecimento do nome de familiares) e grave (dificuldade para comer, falar, comportamento inapropriado).
Papel dos cuidadores
O papel do cuidador também é fortemente destacado na trama. Normalmente, após o diagnóstico de uma doença como essa, a família passa por momentos de ansiedade, culpa e medo. Muitas vezes inconscientemente, um integrante da família acaba assumindo o papel de cuidar da pessoa adoecida, mas se a função não for bem orientada, de acordo com Fernanda Gouveia Paulino, psicóloga da ABRAz, o familiar pode acabar vítima de estresse. “Num estágio moderado da doença, o cuidador dedica cerca de 70% do seu tempo para cuidar do outro”, revela.
Daniel*, 26 anos, um exemplo de cuidador jovem, exemplifica em poucas palavras o que significa conviver com um pai de 60 anos que, antes de aposentar-se, tinha uma vida atribulada de executivo de empresa, era pago para emitir ordens e assumir grandes responsabilidades e tinha secretária disponível 24 horas por dia.
Quem percebeu que algo não ia bem foi a mãe de Daniel. No começo, a família pensou que os esquecimentos eram normais e chegou a acreditar que o empresário estivesse deprimido por conta da aposentadoria. Mas as repetições de frases começaram a ficar cada vez mais frequentes, além dos esquecimentos diários. Atualmente, ele não consegue mais dirigir e toda a família precisou se reorganizar para cumprir as tarefas da casa. “No começo, a gente fica ansioso buscando tratamentos e procurando um manual para entender melhor o problema. Queremos saber qual o próximo passo, mas, na verdade, não existe um próximo passo. Alzheimer é a arte das perdas diárias”, diz ele.
Muitas vezes, uma conversa ou até uma discussão dificilmente são lembradas no dia seguinte. “Na verdade, quando a gente discute por alguma bobagem, meu pai acorda e não se recorda exatamente do motivo da briga, mas sabe que aconteceu alguma coisa. Ele fica angustiado”, completa Daniel. Isso acontece porque a memória afetiva demora mais para ser eliminada que a memória de procedimentos e de conteúdo.
Revelação do diagnóstico
Diferentemente do que ocorre na trama, em que Alice, consciente do seu problema, senta-se com os familiares e explica sobre a doença e como quer agir a partir de então, no Brasil, ainda segundo Paulino, não existe a cultura de revelar diagnósticos. Na verdade, a família tem uma postura mais protecionista e prefere omitir do paciente a informação, com medo de que ele não tolere a notícia. “Mas o curioso é que nós fizemos uma pesquisa na ABRAz com os familiares e 80% responderam que, se tivessem Alzheimer, gostariam de saber”, comenta Fernanda.
Em uma cena do filme, em que toda família passar a infantilizar Alice ao exclui-la das decisões diárias, a filha mais nova a trata com seriedade e autonomia e pergunta como ela realmente se sente. A professora de linguística responde que ter Alzheimer é como se as palavras lhe fossem arrancadas da mente a cada segundo.
O pai de Daniel não sabe que tem a doença. A família decidiu não contar, e os próprios médicos orientaram ser preferível que ele não soubesse. Os familiares acreditam que ele não vai conseguir conviver com a situação — por ter sido um homem muito ativo — e a notícia vai lhe trazer um sentimento ruim. Além disso, é possível que ele esqueça o diagnóstico depois de um tempo. “Se a família decide revelar [o diagnóstico], isso deve ser feito sempre no estágio inicial. Depois o paciente não vai conseguir assimilar e a notícia não vai fazer diferença nenhuma. Por isso reforço que é importante ter essa conversa com a família antes, revelar suas vontades e opções. Isso é importante não só no caso do Alzheimer, mas de outras demências e até da doação de órgãos”, afirma Fernanda.
Fonte: https://drauziovarella.uol.com.br/
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